Bajulação e Dominação
Docere, movere, delectare. Todo discurso pronunciado tem um objetivo, sistematizado na tradição retórica em torno dessas três palavras. Docere, donde por exemplo “docente”: quem ensina ou instrui. Um discurso pode querer ensinar, informar, prover novos fatos ou habilidades àqueles que ouvem. Movere, “mover”, cujo particípio motus, literalmente “movido”, melhor traduzido como “movimento”, se substantiva como motio, “moção”, ou melhor, ex+motio, emoção. Busca-se produzir movimentos na alma, em geral de terror ou tristeza, na tragédia sobretudo: levar às lágrimas. Mas supor no movere apenas esse sentido exclusivamente figurativo, como movimento da alma, parece-me pôr de lado um dos principais objetivos de um discurso, a saber, o movimento em sentido próprio. A tradição parece enfatizar, até onde sei, só um movimento interno, mas o movimento dos corpos certamente é e sempre foi um dos objetivos principais do discurso, sobretudo em questões político-econômicas: levar ao trabalho, voluntário ou não; induzir à ação, por convicção ou ameaça. Em todo caso, parece-me também que o principal objetivo de um discurso em nossos tempos atuais revém enfim ao terceiro, delectare, literalmente “deleitar”, agradar. O par da tragédia, a comédia, aparece aqui, bem como outras manifestações que hoje chamaríamos de literárias: o prazer advindo de recitar ou escutar um poema, de contar ou ouvir uma história, ou, bem mais mundanamente, o prazer de sentir-se elogiado.
Inútil tentar isolar algum desses três sentidos dos demais, e seria muito difícil imaginar um discurso que não cumprisse, ao mesmo tempo, os três requisitos: instruir, emocionar, agradar. Qualquer história que visasse emocionar também agradaria numa bela construção das frases, e traria inevitavelmente fatos, personagens, lugares e costumes novos que acabariam por instruir, mesmo se se evitasse ao máximo o tédio do discurso didático. Não que se precise inovar para instruir: o mero organizar de fatos que já se sabem, o concatenar e despontar de relações já conhecidas mas pouco enfatizadas, constitui igualmente um discurso que instrui. Agrada principalmente um discurso instrutivo que confirma as opiniões já tidas. E até a mais parnasiana das odes, que pareceria exclusivamente agradar, instrui naquilo que expõe, pela forma mesma que encarna, para quem souber enxergá-lo; e pode emocionar alguns espectadores, nem que fossem a mãe ou o amante do autor, se meditassem sobre os sacrifícios do poeta. Todo discurso tem um fim. Todo fim discursivo engloba necessariamente os ouvintes, e se implementa através do instruir, do emocionar e do agradar.
Concede-se, é claro, que um discurso pode visar alguma forma negativa do trio exposto: confundir, desmobilizar, desagradar. Insuflar uma dúvida, por exemplo, como o negativo da instrução. Lembrando evidentemente que essas coisas só muito em abstrato se opõem de forma cerrada: com Tom Zé ou Chico Science, é possível confundir para esclarecer, esclarecer para confundir. O mesmo com uma apatia que desmobilize aqui para mobilizar lá. Um discurso que faça emocionar com algo pequeno para embrutecer diante de coisas mais importantes. Que agrade agora apenas às custas de um perene desagrado como ruído de fundo, que se acumule até o insuportável. Ou enfim, para completarmos a combinatória, um discurso que desagrada para instruir, que confunde para emocionar, que apatiza para agradar; que desagrada para emocionar, confunde para agradar, ou apatiza para instruir.
As categorias retóricas podem, se levadas a sério, constituir uma filosofia da linguagem, e portanto da sociedade e da política, de extrema penetração. Se o ser humano é um animal político, o que só se negou seriamente como exercício (na pior das hipóteses por confusão), as condições das relações instituídas entre as pessoas são a matriz primária das possibilidades de experimentação social. No discurso, em sentido figurado e amplíssimo, isto é, no emprego de signos, há sempre o pólo de quem emite a mensagem, o de quem a recebe, e a constituição da mensagem mesma: ethos, pathos, logos. Se toda relação puder, sob certo viés interessado, ser compreendida como uma “mensagem”, então a filosofia da linguagem recobrirá a teoria da sociedade, as humanidades dependerão da semiótica, e o órganon fundamental dessas reflexões ultrapassa a lógica, sobretudo se esta for compreendida como o conjunto de regras que regem os enunciados apodíticos. Na vida real, pouco ou nada é absolutamente certo. A este órganon, portanto, é acrescido o arsenal retórico, e a política pode ser encarada como o campo de aplicação deste trivium estendido, semiótico, onde coexistem planificadas as regras da gramática, da retórica e da dialética, em que a “lógica” é apenas uma região desta última, a dos enunciados indubitáveis, no mais das vezes supérfluos. Talvez de uma superfluidade similar à com que se estigmatizou o retórico.
A retórica é a política. Também a alta política da ágora, claro, mas muito mais amplamente ainda a de qualquer negociação entre seres humanos em qualquer espaço e qualquer tempo, posto que exige a troca de mensagens e as condições de uma mensagem em geral são descritas pela retórica. Mesmo quando prescindem completamente da metateoria para existir, o que é aliás uma condição comum às artes do trivium: as regras gramaticais antecedem a gramática; a lógica antecede a teoria lógica; as funções retóricas preexistem a sua sistematização. De todo modo, o discurso é o meio pelo qual se implementa o poder, mesmo se “o discurso” for uma sova bem dada que, digamos, passa um recado. Ou um assassinato cujo destinatário são os que sobrevivem ao eliminado. Por este viés, falar é fazer e fazer é falar: portanto, falar sobre a fala pode ser falar sobre a prática, e a prática da fala é o primeiro passo de uma fala prática. Mas tergiverso. Ao que importa:
Parece-me que, na modernidade (séculos XV-XVIII), a economia do trio docere-movere-delectare sofre transformações de primeira importância para nossa compreensão política. O desejo de simplificação, fixação imposta por uma outra economia, a da memória, tende a reduzir os dois primeiros ao último. No iluminismo (penso por exemplo em Hume, entre outros), é uma questão premente compreender por que raios se vai ao teatro ver uma tragédia, o que é que poderia haver de atrativo em chorar largado após acompanhar a construção de um sofrimento insuportável sobre o palco. As explicações em geral tendem a dissolver o que havia de próprio ao movere, agora entendido como uma espécie indireta de delectare. No fundo, a gente saberia que a tragédia não é real, e por isso o que ocorre é apenas um efeito pirotécnico, uma aparência de dor que na verdade é um prazer.
De maneira similar, o que poderia motivar um aluno a estudar e aprender? Essa vontade de saber exige autoinfligir um sofrimento, exercer uma autodisciplina que não se adequa pacificamente aos prazeres. Contudo, só estes últimos não precisam de explicação. Sim, alçar o prazer ao monopólio explicativo das atitudes humanas altera o jogo dos três objetivos do discurso: o delectare é o princípio de tudo o mais quando se refere ao que apraz. O que não apraz diretamente, mas se deseja contudo fazer, precisa ser constituído por alguma cambalhota das representações, como o sofrimento do trágico que na verdade, ou no fundo, é prazer. Igualmente, a instrução poderia ser um prazer remetido ao futuro; muito economicamente, sofro agora na expectativa de um ganho maior. Pois todo aprendizado seria o fruto de um revés: as coisas que acontecem a meu favor não exigem reflexão, só gozo; apenas as que me contrariam a exigem, pois busco espontaneamente compreender as causas de um sofrimento vivido com vistas a evitar sua repetição. Se a dor tiver sido causada por minhas próprias ações, eis que o arrependimento se torna o motor da instrução, e essa manobra revém, mais uma vez, ao delectare, fim último de toda ação e de todo pensamento.
Construo aqui, sucintamente como posso, o que se chamou de princípio do prazer na modernidade, cujo autor principal pode bem ser considerado Condillac, se nos ativermos a seu Tratado das Sensações. Mas essa intuição profunda de que o prazer é o nexo último das ações dos indivíduos é anterior a ele, claro, mesmo se se constitui explicitamente através de suas obras, e se dissemina dali a muitos outros autores, mesmo os menos preocupados em se manter fiéis às opiniões do autor pioneiro, e até os inadvertidos de sua existência. Já entrevemos o despontar do Utilitarismo, gestado quando esse pressuposto vier acompanhado de um culto à matematização que contabilize as motivações humanas. Ensaio aqui, então, a seguinte hipótese, em nenhuma medida nova: o fator mais importante nessa reorganização do discurso é o próprio fato histórico da sociedade comercial, onde o comércio é entendido como modelo da verdade social mais profunda. A reorganização de todo objetivo humano ao aparentemente inofensivo delectare pode ser colocada em paralelo ao desejo de ampliação das contas, de acúmulo de recursos, quando toda transação realizada se assimila a um prazer. Ora, toda transação monetária é, ela também, aproximada por demais amiúde das trocas de palavras, e portanto da própria constituição social. A sociedade é feita de trocas, orientadas por signos. As palavras são como fichas, qual um jogo de azar. Os signos podem ser notas, moedas, palavras, bens. Desde que circulem. E quando circulam geram prazer-em-geral, e até mais-prazer, num princípio de unidimensionalização que se tornará mais óbvio à medida que galvaniza tudo ao longo dos séculos. É verdade que no próprio Condillac bem havia prazeres irredutíveis ao comércio e à propriedade. Mas a tendência está dada, e o ídolo do capital, cujo relé são as finanças, haveria de carcomer tudo quando olhamos em retrospectiva. Que se tratasse apenas da montagem de uma ideologia não negaria sua facticidade enquanto discurso.
No Iluminismo, porém, vige o Antigo Regime. Isto é, a classe comerciante não ascendeu ainda plenamente ao poder. Numa monarquia absoluta, toda reflexão acerca do poder gira em torno do governante, o que torna interessante observar portanto os discursos morais endereçados aos futuros monarcas quando de sua educação. Esse trabalho fica sempre a cargo de um membro do clero, o “preceptor”, que se valerá do melhor da tradição moral cristã para formar o futuro monarca. Trata-se de uma tradição que remonta, porém, a Roma antes da cristandade. Os “espelhos do príncipe”, gênero cujo pioneiro é, salvo engano, Sêneca escrevendo ao jovem Nero (que augúrio), se tornam o modelo mesmo de instrução moral para quem há de ocupar o poder de um reino. E é no rastro dessa tradição que encontro, mais uma vez no abade de Condillac, um aceno interessante quando este compõe seu Curso de Estudos para o Príncipe de Parma. Ali o abade adverte seu aluno do maior risco com que ele há de se deparar em sua vida de rei: o assédio dos aduladores.
O líder absoluto de um reino está, por paradoxal que pareça aos desatentos, em posição extremamente vulnerável. Supondo que ele estivesse interessado em fazer com que que suas atitudes realmente se convertessem em felicidade a seus súditos (falamos de um período caracterizado também como o de um “despotismo esclarecido”), esse rei se encontra diante do imperativo de lidar com as intrigas da corte. Os cortesãos, porém, são muito engenhosos, e o baile de máscaras exige que o governante se arme, ao longo de sua educação, para tornar-se mais esperto do que eles, sob risco de se tornar mero joguete em suas mãos. Isso não é fácil, porém. Entre as técnicas de manipulação dos cortesãos sobre o rei, encontra-se sobretudo a adulação: o reino do delectare, da sedução que busca as graças do poder absoluto para poder, depois, se valer dele em seu lugar, como se agisse como o próprio rei. Ao futuro monarca, portanto, a advertência: cuidado com os aduladores, eles te manipularão no momento mesmo em que agem como seus mais fiéis servidores.
O que acontece se transferirmos essa observação aos tempos posteriores às revoluções burguesas ou, pior ainda, ao advento da sociedade de massas às portas do século XX? Para os Estados que dispensam um poder ditatorial centralizado, ou ao menos dissimulam fazê-lo, parece haver uma estratégia alternativa cujo paralelo aos cortesãos aduladores é quase imediato: a propaganda. A dureza da ordem explícita se disfarça de convencimento sedutor, “influenciando” as pessoas a comportarem-se como devem. É este o argumento principal daquele livro de Edward Bernays, prefaciado por Chomsky, que li ainda na adolescência. É uma estratégia vitoriosa por evitar o conflito aberto enquanto anuncia aos quatro ventos a vitória da liberdade individual. Mais uma vez, no momento mesmo em que se deriva uma doutrina do cliente que sempre tem razão, é o pretenso dominante que se encontrará dominado em favor dos verdadeiros mas discretos governantes.
Se a estratégia da sedução permanece mas se alça a outra escala, ainda reconhecível, é possível enxergar também a estratégia defensiva que deveria contê-la, talvez com tão pouca chance de sucesso quanto as ocasionais admoestações moralizantes da doutrina cristã: o dever moral do príncipe, que remete ao imperativo do conhecimento, ao estudo e à temperança, encontra-se agora diluído por toda a sociedade. Da monarquia absoluta à democracia nominal, é agora o povo quem está constantemente assediado pelos aduladores, o grande aparato do que hoje chamamos marketing, que tenta da forma mais solícita, às raias cada vez mais do invasivo, descobrir aquilo que queremos, para então satisfazer-nos. Calando-nos assim. Se o prazer é a orientação geral de um comportamento, todo agir será controlado pelo conhecimento absoluto das preferências pessoais de cada um, pela discriminação da sociedade em camadas por comportamento de consumo, todas muito bem atendidas e satisfeitas, sempre. É este aparato que cresce a olhos vistos, mas estava dado há muito.
Não é difícil ver como o entusiasta da sociedade comercial, às vezes chamada de “desenvolvida”, está absolutamente dominado. Recusando-se a ver sob um viés global o sistema econômico que devasta e extermina enquanto distribui balinhas de brinde, ele se limita ao próprio prazer localíssimo e, vendo todos os seus anseios constantemente atendidos, se sente na mais feliz das sociedades. Ele se encontra exatamente na mesma posição que o príncipe ingênuo que cai na armadilha dos cortesãos e que, por preferência a um sujeito que faz de tudo para o agradar, dá-lhe poderes indevidos e permite que ele controle esferas do poder às quais ele não tem direito, conhecimento, nem integridade moral. Ao contrário, em nome do deleite do príncipe, da máscara do mais fiel e solícito servidor, ele é a encarnação mesma da calamidade do reino, da infelicidade dos súditos, da ruína dos costumes.
Porém, quando a propaganda reina inconteste por mais de século, o que ocorrerá com um cidadão comum, parte ao menos nominal do poder democrático, se ele se recusa a ser adulado? Ele agora é um trouxa, ué. Que tipo de idiota se recusa ao mais delicioso chocolate, rechaça as mais gostosas mulheres, os tecidos mais fino, um filé com ouro? Constrói-se aqui um falso truísmo, e dos mais absurdos, baseado naquela redução de toda motivação ao deleite mais raso. Pois o que é bom se tornou, por definição, aquilo que agrada. Se alguém se desvia da obviedade ululante, só pode ser por algum tipo de perversão, no mínimo uma afetação interessada. Pois ninguém recusaria um biscoito agora se não tivesse certeza de ganhar dois no futuro. A partir daqui, há algumas acusações comuns que voltam, de novo e de novo, no discurso daqueles já seduzidos pelas firulas marketeiras. A primeira é que a recusa do prazer imediato da sociedade comercial é fruto da inveja. Isto é, trata-se da perversão de gozar mais por ver a perda de um outro que pelo prazer que teria ao lutar pelo seu próprio. Não insistirei que isso se dá por uma perda de visão global da sociedade e por se ter tornado vítima convicta das ilusões do marketing, pois suponho que meu leitor não precise disso. Outra delas é se recusar a acreditar que o prazer das outras pessoas possa ser um prazer também pra mim. A compaixão é inconcebível: gozar com as conquistas dos outros é impossível. Essa confusão entre a inveja e a negação da compaixão se misturam num discurso anticomunista delirante, que se torna teoria da conspiração quando é obrigado a sempre postular uma jogada subterrânea que possa explicar enfim a perversão daquele que se recusa a ser adulado como qualquer pessoa normal.
É de se notar que a impossibilidade da compaixão, um dos argumentos daqueles seduzidos pelo ídolo do capital, implica necessariamente que todo gozo alheio é ou indiferente ou uma perda. De preferência indiferente, é claro, dada a atomização dos indivíduos que essa concepção das coisas exige. Mas persiste aqui, no avesso desse quadro, a possibilidade de que os invejosos sejam justamente os próprios seduzidos, os que correm infinitamente em busca de prazeres maiores porque só têm sob os olhos a vida das classes superiores. Ser capaz apenas de enxergar os estratos superiores aos seus na escala social é como funciona este mecanismo de cascata de invejas que inspira uma série de outros problemas sociais e engaja cada um a recusar ver qualquer possibilidade de amor ao próximo na conduta alheia. Não lembrarei a curiosa situação de que muitos dos seduzidos se crêem cristãos, numa assimilação bizarra entre cristianismo e “ocidente” por um viés extremamente ideológico de “capitalismo”, cujo oposto óbvio é o “comunismo”.
Mais interessante então lembrar que vários desses argumentos contra a bajulação incessante do luxo nobre se tornaram mais conhecidas através das obras de Rousseau, outro autor iluminista, portanto contemporâneo ao Antigo Regime e a Condillac, anterior a qualquer sombra de comunismo, anterior mesmo à ascensão da burguesia ao poder. Ele não inventou esse problema, é claro, mesmo se o colocou em seus próprios termos e marcou, assim, o debate político. A tal Querela do Luxo é um debate amplo no período e acaba tocando em pontos importantes que trago aqui. Da parte de Condillac, por exemplo, o luxo é em si mesmo um problema porque é por definição exclusivo. A exclusividade introduz por princípio o desequilíbrio social, e não há distribuição secundária advinda dessa produção que pudesse compensar o pecado original da busca por ser um cidadão superior aos demais. Sim, o argumento econômico de que os produtos de luxo no fim das contas trazem prosperidade à sociedade como um todo tem pelo menos uns três séculos, e sua denúncia como discurso enviesado e cínico também tem. Porém, hoje há uma dominação ideológica que parece sem precedentes em favor de tudo o que, no fim das contas, existe principalmente para inspirar inveja nos outros, e depois os humilha como fracos e invejosos.
É claro que o prazer extra-imediato é possível. No caso do princípio do prazer devindo utilitarismo devindo financismo, porém, parece que só poderia ser admitido enquanto investimento de longo prazo. Inclusive para falar que quem é pobre é apenas incapaz de pensar assim, que a panaceia da educação financeira tem a ver com conscientizar-se da importância de fazer planos e levar em conta os juros, etc. Mas é com Condillac mais uma vez que rebato a questão, pois ele mesmo, como disse, reduz tudo ao princípio do prazer, porém faz isso através da recuperação consistente de um epicurismo moral. Tudo é prazer, porém o prazer físico é inferior a outros. O prazer raso do corpo, embora início do conhecimento, milagrosamente inspirado por uma natureza que conforma nossos órgãos e os abre a tais prazeres, empalidecerá diante dos prazeres de ordem superior aprendidos posteriormente, e encontrados no exercício mesmo das atividades humanas: o máximo prazer é político e moral. Isso só pode ocorrer, porém, após desenvolvimento e exercício intelectual, um que descubra justamente que há uma ordem global que ultrapassa o indivíduo, e seja capaz de pensar a partir dela, de colocar-se nela, de completar-se através dela. No delirante discurso convictamente “capitalista”, o dos seduzidos pelo marketing, isso não passaria de comunismo.
O que poderia ser a reabilitação dos dois outros fins legítimos do discurso à parte do deleite? A emoção e a instrução sem capitalização imediata, até mesmo contra ela, já se encontram em vários lugares de nossas vidas, é claro. Que a unidimensionalização do prazer seja a tendência predominante e avassaladora da sociedade não varre completamente outras instâncias dos fins do discurso. Porém, é de se notar o tipo de recusa a essas duas regiões, encaradas como sentimentalismo barato (“rico” é coisa de alto nicho) ou erudição vazia, preciosismo. O cultivo dos dois modos preteridos do discurso, o movere e o docere, para além de subalternos ao delectare, me parece guardar algo de legitimamente contestador. Sua combinação, enfim, aponta para a educação dos sentimentos morais, tanto pelo endurecimento diante de certas seduções quanto pelo amolecimento diante de injustiças constantes. Aprender a comover-se e a respeitar a dor. Não penso porém que seja preciso negar o prazer, posto que está sempre em meio aos outros dois. Penso que precisar negar algo a todo custo é só outra forma de ser escravo daquilo. Por isso, despreocupar-se da maximização incondicional talvez já fosse o suficiente para abrir modalidades pouco exploradas, socialmente, de comoções (inclusive atos corporais, na segunda acepção de um movere) e de aprendizagens. Há prazeres não imediatamente subordinados ao ídolo unidimensional capitalista. Revivê-los, promovê-los, disseminá-los, é frente das mais urgentes em qualquer tentativa de um anarquismo de estilo de vida. Quanto ao que vai além da iniciativa individual, para outros tipos de organização política, o movere da ação é ainda um norte a se buscar.
Esses pensamentos aqui dispostos não se pretendem a última palavra sobre qualquer dos assuntos mencionados, até porque têm objetivo heurístico, de dar a pensar mais que cristalizar algo dado. Haveria inúmeros aspectos dignos de nota em cada curva do texto que ora acaba. Quão irônico pode ser que eu só quisesse pôr para circular uma organização incipientes de questões que me parecem muito prementes, nas quais penso há certo tempo, e demonstrativas do uso de categorias retóricas, para a reflexão do aqui e do agora.